sábado, 16 de junho de 2012

A Sete Palmos: chamando anjos e liberando demônios


Quem nunca se imaginou numa situação absurda, dizendo boas verdades que normalmente somos obrigados a engolir em nome do bom convívio social? Ou quem nunca se enxergou agindo de forma totalmente livre e surpreendente? Na série americana “A Sete Palmos” (Six Feet Under. HBO. 2001 a 2005), criada por Alan Ball, um recurso de roteiro dá asas à imaginação dos personagens que podem pelo menos por alguns instantes arranhar o verniz social e viver um momento libertador. Assim, durante os cinco anos de produção da série, foi possível chamar anjos e liberar demônios. Muito apropriado para quem tem a morte em seu cotidiano. É o caso da família que comanda a Fisher & Sons Funeral Home.

A maioria destas cenas com este tom delirante começa com uma conversa normal até que um dos personagens numa situação limite leva a ação para um campo quase inverossímil. As ações são tão bem amarradas no roteiro que nunca percebemos de início quando a cena é mero fruto da imaginação dos personagens ou uma reação verdadeira, beirando o surto. A montagem é precisa. Somente um corte repentino revela que tudo se tratava de uma versão imaginada para o que certamente não aconteceria. Esta “brincadeira” com o que de fato acontece e aquilo que é sonhado se repete muitas vezes com os personagens que, ao se deparar com a morte, percebem a fragilidade da existência.

Na série o personagem Nathaniel Fisher Jr (interpretado por Peter Krause), volta para a casa da mãe Ruth (Frances Conroy) após saber que o pai faleceu. Ele acaba se sentido forçado a trabalhar para a manutenção do serviço funerário que funciona no andar térreo e no porão da casa onde vive a família. Mesmo relutante, Nate – como é chamado pelos mais próximos - precisa juntar forças com o irmão e agente funerário David (interpretado por Michael Hall, atualmente protagonista da série Dexter). A família se completa com Claire (Lauren Ambrose), a filha mais nova e inquieta. A trama trata de drama familiar, religião, política, drogas, homossexualidade, solidão e aflições diversas do homem contemporâneo. A morte, claro, é o tema central.

    Quase todos os episódios das cinco temporadas se iniciam com a morte de algum personagem. As histórias dos mortos, que precisam ser preparados  e levados aos rituais fúnebres, se cruzam com a vida dos Fisher. É através da morte que se aborda a vida, com todas as nuances de prazer e dor. De início estes óbitos podem incomodar aos mais sensíveis. Mas isto é tão cotidiano para os Fisher que o público tem grandes chances de, a cada novo episódio, assimilar tudo com naturalidade. O fato é que, a série, aos nos colocar o tempo todo diante da ideia de que tudo tem fim, também faz refletir sobre a forma como vivemos e nos relacionamos com as outras pessoas. 

 Os personagens buscam um sentido para a vida. Por isso precisam reavaliar as próprias atitudes e neste exercício de observação de si e do outro surgem muitos questionamentos sobre o materialismo e a espiritualidade. Vale destacar que inclusive os mortos travam embates ideológicos com os vivos. Enfim, longe de ser um mero entretenimento, a série “A Sete Palmos” pede disposição para pensar nos valores sociais, na complexidade da vida contemporânea e no mistério da morte. Para quem não viu na televisão, há um conjunto de cinco caixas com os 63 episódios.




domingo, 27 de maio de 2012

Wim Wenders leva para o cinema vigor de Pina Bausch





Primavera, verão, outono, inverno. É fazendo referência às quatro estações do ano que uma bailarina aparece no início do documentário “Pina”, do cineasta alemão Wim Wenders. Ele faz uma homenagem póstuma à coreógrafa Pina Bausch, artista que criou espetáculos de teatro-dança, sempre numa criação colaborativa com seus bailarinos, rompendo barreiras da dança clássica. Ao fazer referência às quatro estações, fica explícita a ideia de que a dança atravessa o tempo, o espaço, o corpo.

Durante todo o documentário, que valoriza muito mais a expressão das coreografias do que informações sobre a vida da coreógrafa, bailarinos sorridentes caminham em fila indiana, executando movimentos repetidamente com os braços. Primavera, verão, outono, inverno. Insistentemente, repetidamente fazem outras aparições no filme. Cruzam o palco, passam por ruas movimentadas e atravessam paisagens naturais. A imagem parece ser a metáfora ideal para afirmar o trabalho contínuo e a necessidade de dançar, mesmo nos momentos de maior adversidade.

Pina Bausch, mulher de poucas palavras, via na dança o potencial de preencher com movimentos o silêncio deixado pelas palavras não ditas. Mas diante da necessidade de se expressar verbalmente, palavras selecionadas e certeiras foram usadas para orientar os bailarinos. Alguns dos artistas relatam isto no documentário. Em quase 20 anos de convivência, a bailarina Ruth Amarante ouviu da coreógrafa um único conselho: “enlouquecer mais”. Para a tímida Ditta Miranda Jasifi, que durante as avaliações sobre os ensaios das coreografias se mantinha sempre discreta, uma pergunta de Pina - em tom de tristeza na voz – soou marcante: “Ditta, porque você tem medo de mim?”. Para um jovem bailarino que se sentia confuso diante da vida ela disse “dance por amor”. Para todos nós ela diz: “dancem, dancem ou estaremos perdidos”. Escrevo assim, “diz” – no presente -, porque a força da expressão parece ecoa agora. O  movimento diz tudo.

O que se vê nas coreografias é a força do desejo, tema recorrente na criação de Pina. Com movimentos precisos, o corpo reage ora com vigor, ora com languidez. Nada é feito gratuitamente. Há dosagem de energia, de força. A intensidade existe de acordo com a situação dramática que envolve o bailarino. E esta situação dramática consegue se definir em cena envolvendo o conjunto (artista, ideia, público), formando um corpo só.

A maior virtude do documentário de Wim Wenders é conseguir envolver o público no ambiente cênico de Pina Bausch, possibilitando olhar de perto os olhos dos bailarinos, os detalhes do corpo, do movimento, do suor. Os detalhes exibidos compensam o fato de não estarmos diante de um espetáculo vivo, mas somente de um registro audiovisual. O diretor consegue recortar trechos de espetáculos históricos da arte contemporânea e assim falar quem é Pina Bausch.

E “quem é Pina Bausch?” é uma pergunta que não exige resposta precisa, já que a própria coreógrafa acreditava que o importante era seguir buscando, mesmo sem saber exatamente o que buscar ou para onde ir. Importante é ser de verdade, viver de verdade e seguir. Primavera, verão, outono, inverno.  



Philip Roth mostra a banalidade da morte em “Homem Comum”

O personagem central do romance “Homem Comum” (tradução de Paulo Henriques Britto/Companhia das Letras), de Philip Roth, não tem sequer um nome. Isto seria mesmo só um detalhe dispensável diante da generalizante condição de ser mortal. Então vamos chamá-lo simplesmente de homem comum.


Publicitário de profissão, pretenso artista plástico durante toda a vida até o último momento, o homem sem nome se divide entre os impulsos do sexo, a preocupação minuciosa com a saúde e o sentimento de culpa por não conseguir manter vínculo afetivo com nenhuma das três esposas que teve, nem com seus dois filhos do primeiro casamento. Logo nas primeiras páginas em que é descrita minuciosamente a cena de seu funeral, é possível ter uma ideia das precárias relações familiares.  O livro diz no início que o personagem morre e isto não diminui o interesse pela trama. Pelo contrário, desperta a curiosidade em saber os detalhes de como o personagem resistiu ao enfraquecimento inevitável causado pela velhice.

A história do homem comum não carrega nada de excepcional. Não existe uma trama mirabolante. A beleza do livro se concentra justamente na previsibilidade de tudo o que acontece. Nada surpreende quanto ao enredo, mas tudo é ricamente descrito. São os detalhes que possibilitam enxergar com clareza os conflitos que regem a vida do personagem. Na infância ele se sentia feliz por ser considerado pelo pai como uma pessoa confiável. Na fase adulta, sem conseguir assumir o modelo perfeito de marido e pai, este homem se vê em contradição. Ele é comum porque é contraditório e porque, inevitavelmente, é perecível.

O monólogo interior do personagem descrito pelo narrador traduz a condição solitária e torna o leitor testemunha de conflitos, desejos sexuais, culpa e medo. O recurso é usado de forma muito apropriada para mostrar, por exemplo, o conflito do personagem ao perceber que tem inveja de seu irmão mais velho, de saúde aparentemente inabalável.

Nada na velhice compensa a perda do vigor físico. A redução da libido, a julgar pelas aventuras sexuais da juventude, parece ser uma condenação para o personagem nos últimos anos de vida. Ele, em divagações solitárias, mostra esta insatisfação com a fragilidade física. É nesta fase da vida que ele vê uma jovem correndo na praia e se encanta por ela, talvez não somente pela beleza da mulher, mas também porque a situação lhe põe em contato com o ímpeto perdido há muito tempo.


A velhice do personagem central é contextualizada no período histórico logo após o ataque às torres gêmeas, ocorrido nos Estados Unidos em 2001. O momento em que a autoconfiança americana é abalada e que o sentimento de segurança nacional já não é o mesmo parece criar um ambiente propício para acentuar no homem sem nome a vulnerabilidade. Seu corpo mostra a decadência trazida pela idade e o mundo em sua volta já não é mais o mesmo.


Philip Roth, considerado dos mais importantes romancistas americanos da contemporaneidade, escreve este livro de forma não linear, mas com habilidade suficiente para não deixar informações fora de contexto. Na primeira página do romance temos a descrição física de Phoebe, a segunda esposa do “homem comum”: “alta, magérrima, de cabelo branco, cujo braço direito pendia inerte ao longo do corpo”. O detalhe do braço direito ganha explicação quase ao final do romance, numa cena em que ela, numa cama de hospital, fala ao ex-marido da desgraça que é a impotência física. Este é só um dos exemplos de como o autor organiza as informações sem se perder nos detalhes, amarrando cada situação. Este engenhoso embaralhar de fatos sustenta o interesse pela história que não tem final surpreendente e nem precisaria disso para tornar o romance interessante.

No meio de tantos temores vividos pelo personagem, talvez o prazer de nadar no mar sob o intenso brilho do sol seja a melhor tradução do que se convencionou chamar felicidade. O “buraquinho” (palavra singelamente erotizada pelo autor) de uma amante pode resumir a pessoa na existência de pleno prazer, sem preocupações ou busca por qualquer explicação existencial.

Steve Mccurry revela a alma universal em suas fotografias


Festas religiosas no oriente, zonas de guerra, o cotidiano em países como Índia, Nigéria e Paquistão ofereceram ao fotógrafo americano Steve Mccurry  material para capturar imagens que traduzem sofrimento e alegrias. O conjunto de imagens carrega o conflito da alma, a contradição da própria vida que não pode se limitar a definições superficiais.

Algumas imagens como “Menino em Pleno Vôo” (2007) e “Pescadores” (1995) transmitem a sensação de liberdade – não somente a liberdade daquele menino que corre ou dos pescadores que enfrentam a força do mar – mas uma sensação que pode ser compartilhada universalmente, mesmo para quem nunca esteve nos lugares fotografados.

Mccurry tem a capacidade de olhar o detalhe e o plano geral. Em algumas imagens elege dá prioridade ao detalhe, como na série de retratos que valorizam o olhar dos fotografados. Em outras fotografias é o plano geral que fala de maneira eloqüente, como na imagem que mostra monges budistas em frente a uma enorme pedra considera sagrada por eles. A escolha do detalhe ou do plano geral é fundamental para a expressão da imagem.

Sharbat Gula, a menina afegã fotografada em 1984, virou um ícone do trabalho de Steve Mccurry. É uma atribuição de valores que não se justifica somente pela qualidade da imagem, mas pela aura criada em torno dela. Vale observar mais atentamente outros retratos, que igualmente parecem revelar a alma dos fotografados.

Falar do uso das cores pode parecer dispensável, já que é tão recorrente no conjunto da obra de Mccurry. Mas não é possível ignorar esta qualidade do trabalho porque as cores compõem cenários fantásticos. Mccurry valoriza a combinação ou contraste de cores, como na imagem do homem pintado de verde, num aparente estado de êxtase, cercado de outras tantas pessoas pintadas de vermelho. A imagem capturada na Índia em 1996 é um bom exemplo de equilíbrio entre forma e conteúdo.

O fotógrafo tem disponibilidade para encontrar o imprevisível e buscar nesta situação o objeto a ser fotografado. Sobre isto, ele mesmo já disse: “Você não pode ficar preso no que você pensa ser o seu destino. A jornada é tão importante quanto o destino”.








Os Retirantes é crônica imagética do Nordeste brasileiro


“Os Retirantes”, de Candido Portinari, é como o retrato subcutâneo do homem nordestino brasileiro. É sob a pele que mora a fome. É a pele magra que revela ossos, músculos frágeis e a aproximação da morte.  A obra dramática e impactante, que expressa o interesse do artista neste fenômeno social que é o êxodo da população rural, carrega em si a universalidade do problema que também atinge outros povos de diferentes lugares.

As perguntas que a obra “Os Retirantes” pode fazer hoje são: “com que pele os filhos e netos dos nordestinos fazem hoje o movimento de retorno à terra natal?”, “quem sobreviveu?”, “qual a intensidade da fome?”. A imagem do quadro tem essa capacidade de ir além de um registro histórico e social, de transcender a própria função de uma apreciação estética. É fala viva e persistente, que não deixa esquecer o passado miserável dos retirantes e não pára de perguntar pelo futuro dos brasileiros.

Pai, mãe, seis filhos? Pai, mãe, cinco filhos? – neste caso quem seria a moça que aparece um pouco deslocada do grupo? A primogênita e mãe solteira? Quem sabe a família possa ter somente quatro filhos e a jovem talvez seja a viúva de algum Severino, uma agregada. Imaginar quem são os personagens que aparecem no quadro e suas relações familiares acaba se tornando um exercício de criação de roteiros de vidas. Secas, com certeza.

O olhar morto do velho tem no quadro um grande contraste: os pequenos e  espertos olhos da criança de colo. Olhar que reina no centro da obra como a incitar um pouco de esperança ou a expressar a inocência de quem nunca se lembrará dos urubus sobrevoando. É o olhar de quem enfrenta a morte sem conhecer o perigo.

Com este quadro Candido Portinari concilia a arte figurativa com as influências cubistas e surrealistas. As cores cinzentas e o jogo de luz e sombra criam a profundidade o ambiente vasto do sertão. O resultado é crônica imagética do Nordeste brasileiro.


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

“A Primeira Noite de um Homem” resiste ao tempo


    


Anos 1960: o homem vai à lua, os jovens não acreditam mais no sonho americano, primeiro transplante de coração é realizado no mundo, o muro de Berlim é construído, os hippies contestam o poder militar e econômico. Nesse contexto é criado o personagem Benjamin Braddock interpretado pelo ator Dustin Hoffman no filme “A Primeira Noite de um Homem” (Estados Unidos/1967), de Mike Nichols.

A primeira imagem é o olhar perdido de Braddock, dentro de um avião, retornando para casa depois de formar-se na faculdade. Logo se vê que ele ilustra bem o sentimento jovial diante de tantas dúvidas sobre o futuro. Vulnerável, ele é seduzido pela Sra. Robinson, mulher do melhor amigo de seu pai, bem mais velha, personagem de Anne Bancroft. Não resistindo à sedução da vida, o jovem desaponta os pais que concentram toda a sua atenção no sucesso profissional e social do filho. Ele acaba se apaixonando pela filha da amante, a jovem Elaine, interpetada por Katharine Ross. Pronto: conflito estabelecido. Agora ele tem que enfrentar a tudo e a todos – principalmente a Sra. Robinson - para viver seu amor.

Dustin Hoffman teve neste filme uma boa oportunidade para ser apresentado ao ambiente cinematográfico, interpretando um personagem que conquista facilmente a empatia do público. Braddock tem dúvidas, medos e dilemas como qualquer um. Além da atuação de Hoffman, recursos da linguagem cinematográfica como a fotografia e a montagem são usados de forma eloquente para transmitir as sensações do personagem.

É visível o mal estar do jovem na festa de recepção oferecida pelos pais. Ele é apresentado aos amigos da família como a promessa de sucesso e ouve conselhos como a necessidade de prestar atenção nos plásticos porque é neles que está concentrado o futuro dos negócios. Os closes no rosto do ator e dos convidados ilustram bem como o jovem se sente pressionado e intimidado na festa.

A direção de Nichols propõe uma fotografia que expressa as sensações do personagem. Isto é notado na cena em que Braddock é obrigado pelo pai a fazer uma demonstração de uso de equipamentos de mergulho na piscina no dia em que completa 21 anos de idade. O que se vê é a subjetiva de Braddock observando o ambiente através da máscara de mergulho, num silêncio absoluto, e em seguida vemos o rapaz no fundo da piscina, parado, somente respirando, solitariamente.

Outro momento em que a fotografia revela o estado do personagem é o dia seguinte à primeira noite de sexo.  Braddock flutua na piscina, mesmo lugar onde já foi vítima de constrangimento, agora sob a luz do sol, emoldurado pelo azul, transmitindo sensação de relaxamento e realização. A música “The Sound of Silence”, de Simon e Garfunkel, acentua o retrato do êxtase.

A montagem também é responsável por bons momentos do filme, como, a sequência em que Braddock sai da piscina e logo aparece entrando num quarto de hotel para, em seguida, movimentar-se dentro da própria casa. O recurso mostra que o jovem, durante um período, está dedicado somente aos encontros secretos, sem se importar com as cobranças sociais.

Para os dias atuais o filme parece fora de contexto porque, afinal, as angústias dos jovens agora são outras e já se constatou que a simples rebeldia não resolve os conflitos do mundo. Mas o amor continua sendo o impulso para a criação de tramas mirabolantes. Além disso, as boas atuações e o desempenho da direção de Nichols valem a experiência.



Dustin Hoffman em atuação marcante num dos primeiros filme de sua carreira

É no riso que mora a crítica de Chaplin

Eloquente como diálogos bem construídos. Mais falante e ruidoso do que muitos filmes da fase sonora. Parte do que se convencionou chamar de “cinema mudo” até hoje resiste ao tempo, não como documento histórico da sétima arte, mas por conseguir dialogar com o público contemporâneo. Desta fase criativa, os filmes de Charles Chaplin e o personagem Carlitos justificam o status de ícone de cinema por sua realização precisa, conteúdo temático universal e humor crítico.

O riso é uma das possibilidades mais certeiras de fazer crítica social e política. Charles Chaplin sabia disso, usou deste recurso até incomodar o governo americano, o que acabou resultado em sua expulsão do país. No filme “O Imigrante”, feito em 1917, o personagem Carlitos chega aos Estados Unidos num navio superlotado de pessoas que buscam uma oportunidade. O final é feliz, mas até chegar lá o personagem amarga por ter perdido o contato com a garota por quem se apaixonou no navio, sofre pela falta de dinheiro e as cruedades da recepção aos imigrantes.

As relações de poder aparecem constantemente em “O Imigrante”, até mesmo nas situações mais informais como na cena do restaurante em que Carlitos consegue rever a garota por quem se apaixonou, a convida para comer e logo percebe que não tem dinheiro para pagar a conta. E ele já sabe que os garçons são implacáveis ao punir quem consome sem ter um tostão para o pagamento. O personagem se sente tão incomodado com a situação que é obrigado a fazer coisas absurdas para tentar juntar uma moeda que tem no chão. Com precisão de movimentos e marcação de cenas, o efeito cômico é garantido.

No filme “Rua da Paz”, também produzido em 1917, novamente a questão do poder e as diferenças sociais aparecem no centro da trama. O vagabundo acaba se tornando um policial e precisa colocar ordem na Rua da Paz, dominada por um grandalhão violento. Desajeitado, mas esperto, o personagem não tem tanta convicção de sua autoridade e passa a maior parte do tempo fugindo. Ainda assim consegue alcançar seu objetivo.

A técnica corporal adquirida por Chaplin no teatro garante uma precisão de movimentos útil para a narrativa sem falas. As ações ocorrem no tempo adequado para a “leitura” da cena, da imagem que não somente conta uma história, mas faz isto transmitindo as sensações. É baseado no essencial e na simplicidade que Chaplin alcança uma comunicação eficiente com o público.

Os recursos técnicos, em comparação aos de hoje, podem até parecer limitados. Mas para tudo há compensações: se a câmera fica parada e não é possível fazer zoom, a fotografia compensa com o enquadramento preciso; se não é possível falar, é o olhar do ator em destaque que diz o que se passa na alma; se a montagem não conta com tecnologia avançada que crie ilusões na tela, é a música sempre presente que envolve, cria climas, imprime ritmos diversos.


As tramas são sempre cheias de conflitos, o personagem Carlitos precisa sempre superar obstáculos para alcançar seus objetivos e isto impulsiona as histórias para seu desenvolvimento. Do conflito central que dá base para as histórias é gerada uma tensão dramática que garante o interesse pelo que se vê. Parece básico, mas são estas, entre as outras qualidades citadas, que possibilitam à obra de Chaplin a plena comunicação com o público de várias gerações, até os dias atuais.


Carlitos numa das cenas mais bem arquitetadas do filme "O Imigrante"

sábado, 20 de agosto de 2011

Assalto ao Banco Central decepciona com tantos clichês


“Assalto ao Banco Central”, filme roteirizado por Renê Belmonte e dirigido por Marcos Paulo, é uma das maiores surpresas da atual produção cinematográfica brasileira. Mas não uma boa surpresa. A ficha técnica reúne experientes profissionais nas diversas áreas e o resultado é um clichê só. A trama de ficção é inspirada no roubo de R$ 164, 7 milhões que aconteceu em 2005 no Banco Central, em Fortaleza, capital do Ceará. A quadrilha cavou silenciosamente um túnel de 84 metros até o cofre, levando o montante de dinheiro que pesava três toneladas.

O filme mostra desde a formação da quadrilha, o planejamento e a execução do plano. Simultaneamente, num jogo de montagem que no decorrer do filme se torna repetitivo, o público acompanha o trabalho de investigação da polícia. Passo a passo, sem mistérios, sem suspense, sem clímax. Nos primeiros instantes do filme já se sabe de tudo: bandidos cavando, roubando, fugindo, matando, morrendo. Polícia investigando, reunindo provas, se equivocando, prendendo bandidos e, só pra variar, vivendo conflitos que nada convergem para a trama. Exemplo disso é a investigadora Telma Monteiro (Giulia Gam) que é homossexual e precisa o  tempo todo se justificar porque não tem tempo para o amor.

É como se o público também percorresse um túnel. Mas um túnel bem conhecido, sem sinuosidades, com chão firme pra pisar, sem obstáculos pela frente. Nada no roteiro é tão interessante a ponto de despertar a curiosidade ou fazer pensar em múltiplas possibilidades de resolução da trama. É o mínimo que se espera de um filme que se vende como ação e se inspira num intrigante fato real. Só pra entrar no assunto clichê: “a arte, neste caso, não imita a vida”.

Os clichês são inúmeros. A começar pela trilha sonora que tenta dar aquele clima de suspense ao que já parece óbvio. Em vários momentos é usado um som forte, colocado bruscamente “só pra dar um susto” num momento em que está convencionado como tenso.

O bom elenco é vítima de um roteiro que reúne personagens rasos. Hermila Guedes, a presença feminina no filme, troca várias vezes de figurino, mastiga chiclete em muitas cenas e é do tipo de cruza as pernas, segura um cigarro apagado, faz cara de sensual e lança a pergunta: “tem fogo?”. Vinícius de Oliveira é Devanildo, um desmemoriado e afeminado evangélico, responsável por, entre outras tarefas, pagar as contas da casa usada como QG da quadrilha. Claro, ele se esquece de pagar a conta de luz. Devanildo dá um tom cômico que fica bem deslocado do conjunto de personagens. Nem a presença de atores como Giulia Gam e Tonico Pereira torna a trama convincente.

O filme transmite a impressão de que faltou um olhar mais atento da direção para as diversas áreas de criação. Tudo bem desproporcional à barulhenta campanha de lançamento do filme no Brasil.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Elias Andreato revigora texto clássico em montagem de Édipo

    foto: Fernando Antunes


Assistir a uma peça teatral cujo enredo já conhecemos, assim como a evolução dramática de cada personagem até chegar ao final. Este pode ser um dos prazeres ao apreciar a montagem de um texto clássico, desde que esta mostre detalhes que lhe são únicos. É o caso de “Édipo”, adaptação e direção de Elias Andreato. Texto enxuto e ainda com a essência da tragédia grega, cenários e figurinos simplesmente funcionais e bons atores estão entre as qualidades da montagem em cartaz no Teatro Eva Herz.

Tomemos como reflexão a maneira como Pierre-Aimé Touchard se refere a tragédia grega em seu livro O Amador de Teatro ou a Regra do Jogo: “Um teatro imóvel é um teatro morto. Se quisermos que nossas obras primas trágicas se conservem em outros lugares que não apenas nos livros, é preciso ousar fazer com elas o que se deve fazer com os lugares comuns: repensá-los. E neste repensar fomos colocados diante de três atitudes possíveis: ou  bem abandonas deliberadamente a tragédia à sorte dos mistérios da idade média ou das pastorais de renascimento, isto é,  a ser enterrada num lençol de papel impresso – ou bem continuar um culto ardente, mas esclerosado e reservado a um grupo de fanáticos, cada vez mais fechados neles mesmos – ou bem assegurar a sobrevivência da tragédia, humanizando-a, isto é, traindo-a”.

A encenação de Andreato, sem dúvida, assume a terceira atitude apontada por Touchard. Pra isso recorre a uma adaptação enxuta da obra clássica, sem qualquer excesso que possa escapar até mesmo aos ouvidos mais atentos. O texto conserva o fio condutor da tragédia e promove uma eficaz comunicação com a plateia, sempre atenta à evolução de Édipo, que despenca do poder até a miséria total e exílio de Tebas.

A tragédia conta a história do rei Édipo, que, tentando fugir das previsões de um oráculo, acaba se entregando ao seu próprio destino: matar o pai e casar-se com a própria mãe, Jocasta, que nesta montagem é interpretada por Tânia Bondezan. O diretor colocou em cena somente as personagens que conduzem a trama. O coro, parte marcante na composição de uma tragédia grega, é reduzido a três atores que usam sanfonas e mostram uma eloqüente interferência no ritmo da montagem. Entre estes atores, Nilton Bicudo assume a função de um Corifeu, narrando e comentando a cena.

O cenário assinado pelo diretor somente dá apoio ao elenco que permanece o tempo todo em cena. Os figurinos de Laura Huzak Andreato e Marc Lab são neutros. Não há qualquer elemento material que possa adornar a cena. Pelo contrário, o visual é discreto, ajudando a direcionar a atenção para o elenco, banhado pela precisa  iluminação de Wagner Freire.

Até o gestual dos atores é econômico, reduzido ao essencial para a compreensão da trama. Com poucos movimentos, mas intensos e presentes, há uma valorização da fala. É possível “visualizar o texto”, num estímulo à plateia raro de se ver atualmente, neste momento em que é dada à imagem o poder máximo de comunicação. O ator Eucir de Souza, intérprete de Édipo, transita da arrogância ao aniquilamento total, envolvido pelo destino que faz seus olhos derramam humanidade: traição consumada à tragédia, que prenuncia a imortalidade da obra clássica.


SERVIÇO:

“Édipo” está em cartaz no Teatro Eva Herz (Avenida Paulista, 2.073 – Livraria Cultura/ Conjunto Nacional) às terças-feiras, 21h. Até 30 de agosto. Ingressos: R$ 40. Lotação: 166 lugares. Bilheteria funciona de terça a sábado, das 14h às 21h, e domingo, das 12h às 19h. Aceita todos os cartões de crédito. Não aceita cheque. Informações: (11) 3170-4059 - www.teatroevaherz.com.br. Vendas pela internet: www.ingresso.com. Vendas por telefone: 4003-2330. Duração: 70 minutos. Classificação Etária: 14 anos.

                       ilustração: Elifas Andreato

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Lentes de Paula Sampaio desvendam a vida na Transamazônica

“Uma terra sem homens para homens sem terra”: as palavras do presidente General Emílio Garrastazu Médici argumentaram um projeto de modernização para o Brasil e de integração das regiões: a construção da Transamazônica. O ano era 1970. O sentimento: euforia pela vitória do país na Copa do Mundo. O otimismo geral levou muita gente a se aventurar na abertura da estrada e na busca pelo progresso. Utopia, com certeza. Mas que só foi constatada agora, com os olhos voltados para o passado e para o presente. Entre estes olhos, um dos mais atentos é o da fotojornalista Paula Sampaio, que percorreu cidades isoladas, enfrentou a lama e olhou no fundo dos olhos de quem vive lá.

Paula Sampaio, mineira radicada em Belém do Pará, iniciou seu projeto de documentação fotográfica sobre a colonização e migrações na Amazônia em 1990, atenta as consequências socioculturais que a construção da rodovia levou para a região. Mais do que documentar, ela cruzou a linha do tempo, encontrando resquícios de sua própria história, já que aos seis anos de idade havia mudado com a família para uma cidade da região onde se cruzam as rodovias Belém-Brasília e Transamazônica.


Lugares e pessoas foram fotografados mais de uma vez em diversas viagens feitas por Paula Sampaio, que trabalhou por mais de 20 anos para concluir seu projeto.

Calor intenso no verão, muita lama e isolamento no período das chuvas.





A cada foto muitas histórias que se cruzam, contam e recontam por diversos ângulos uma parte da história do país, da memória dos conhecidos “anos de chumbo” até os dias atuais. Homens e mulheres deparam-se com sua realidade e com seu sonho – aquele que ficou pra trás ou o que insiste em se manter vivo, voltado para o futuro. O envolvimento da fotógrafa com o ambiente e com as pessoas resulta numa cumplicidade que se mostra na imagem, como no olhar da senhora Maria do Socorro do Nascimento, da cidade de Picos-PI. Ela diz “Transa o que, minha filha? Como é? Essa Transamazônica...Sei não, não sei mesmo não”. Imagem e depoimento, juntos, traduzem hoje a ingenuidade de muitos que, no passado, viveram em plena ditadura militar sem perceber o contexto político e social.













Maria do Socorro: “Não vou especular, saber pra onde vai, pra onde não vai, só vivo no mundo trabalhando, aí não tenho tempo”. 


A fotógrafa atualmente vive em Belém do Pará, trabalha no jornal O Liberal e tem se dedicado a documentar as comunidades remanescentes de quilombos no Estado do Pará. Além de ter participado de diversas exposições coletivas, também possui três publicações: Terra de Negro. Belém: IAP/Programa Raízes, 2003; Terra de Negro 2. Belém: IAP/Programa Raízes, 2004; e Paula Sampaio – Coleção Senac de Fotografia volume 7. São Paulo: Editora Senac, 2005.


Veja mais fotos de Paula Sampaio: 
http://www.flickr.com/photos/63121448@N05/sets/72157626773471276/